Perifacon mostra o poder dos jogos, da cultura geek e da tecnologia fora da zona alta de São Paulo.
Um grande grupo de jovens está fazendo cosplay de seus personagens favoritos. Outros usam camisetas com motivos semelhantes e cabelos coloridos e brilhantes. Essa cena é típica de muitas convenções ao redor do mundo, mas aqui em São Paulo é diferente. Muitos dos participantes são brasileiros negros e pardos. Suas gírias e maneirismos demonstram um orgulho coletivo em suas comunidades, que também são alguns dos bairros mais desfavorecidos da região.
Isto é da Perifacon, uma convenção crescente iniciada em 2019 dedicada à cultura geek e gamer no Brasil. O público-alvo do Perifacon são pessoas de bairros pobres e favelas afastadas das áreas mais nobres de São Paulo e arredores.
A gíria do português brasileiro perifa deriva da palavra periferia, ou “periferia”, e é o equivalente linguístico de “bairro” ou “gueto”. A Perifacon é apelidada de “a Comic Con da favela” e exemplifica um futuro para a cultura geek brasileira e seu mercado maior.
A ideia do Perifacon partiu de um grupo de sete jovens negros vindos da periferia da cidade: Andreza Delgado, Igor Nogueira, Mateus Ramos, Matheus Polito, Luíze Tavares, Gabrielly Oliveira e Pedro Okuyama. Oliveira, Tavares, Nogueira e Delgado representam-na como sócios, sendo este último responsável pela gestão dos negócios da Perifacon.
“Olhando para trás, sinto muita ternura pela criação do Perifacon”, lembra Delgado em entrevista por telefone à WIRED. “Sinto o mesmo em relação à minha história, pois sempre fui nerd, frequentando lanhouses, sempre li Turma da Mônica”, diz ela, referindo-se aos espaços onde é possível alugar um computador por hora e uma das histórias em quadrinhos mais populares do Brasil, também conhecida como Turma da Mônica. Ela também leu livros “baseados em Ayrton Senna, porque quando as pessoas pensam em nerds, as imagens da Marvel e da DC são as primeiras que vêm à mente. Mas os títulos brasileiros também são coisas muito nerds.”
O ano de 2023 marcou a terceira iteração do Perifacon, atraindo 13 mil pessoas no dia 30 de julho no Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes, na zona leste da cidade conhecida por suas raízes da classe trabalhadora. Não houve cobrança de entrada e o evento contou com a participação de grandes marcas como Netflix e Warner Bros.
Delgado vê a convenção não apenas como uma promoção das pessoas e suas criações, mas também como um incentivo às comunidades desfavorecidas e afro-brasileiras. O Perifacon também oferece uma ponte entre trabalhos menos lucrativos e possíveis cargos em grandes empresas. Ainda assim, a convenção não está isenta de obstáculos ao sucesso.
“Os obstáculos que a Perifacon enfrenta são baseados em investimentos. Exige muito trabalho árduo do aspecto financeiro. Avançamos muito, mas… mesmo depois de cinco anos de Perifa ainda enfrentamos a falta de apoio deles, mesmo considerando que temos uma torcida fiel”, afirma Delgado.
Outro golpe veio com a pandemia de Covid-19. O Perifacon foi cancelado em 2020, e sua segunda edição em 2021 foi virtual. A pandemia devastou o Brasil e especialmente áreas empobrecidas. De acordo com um estudo da Universidade Johns Hopkins, o Brasil ficou em quinto lugar em infecções globais e em segundo em taxas gerais de mortalidade. Com base em um relatório das Nações Unidas de 2019, o Brasil é uma das nações mais socialmente injustas do planeta.
“O cenário [da convenção] era muito restrito e depois ganhou um novo horizonte”, atesta Eduardo “Du” Marques, frequentador da Perifacon. Marques, que é negro, é adepto da cultura geek e nasceu no bairro Jardim Robrú, zona leste da cidade.
Marques conta que ficou maravilhado ao conhecer e interagir com artistas, desenvolvedores de jogos e novas gerações de nerds de sua região da cidade. Ele também ficou emocionado com o fato de muitos deles estarem trabalhando em ideias enquanto também fazem cosplay “com muitos sorrisos no rosto”, explica ele.
“É lindo ver um grande espaço de afirmação como o Perifacon.”
A convenção também não se restringe a jogos e cosplay. A Perifacon dá espaço “para música, artes visuais, teatro, programas de TV, cinema e literatura. Abre portas para toda a cidade olhar e desfrutar do que temos consumido. Eventos como esse mudam vidas”, afirma Marques.
A professora Daniela Osvald Ramos, da Escola de Artes e Comunicações da Universidade de São Paulo (USP), concorda que a Perifacon atrai o olhar do mainstream para a produção underground e, nesse processo, se afasta dos estereótipos habituais de pobreza e racismo.
Ela acrescenta que o próprio nome funciona como uma justificativa para as comunidades que atende, e o evento convida “as áreas centrais gentrificadas a olhar para a periferia e ver que tudo o que acontece no centro da cidade e na parte alta branca e rica também acontece lá”, diz ela. . “O mercado pode ver o quão ausente tem estado nessas áreas, e o mercado não quer estar ausente em nenhum território.”
Em 2022 entrevistei a jornalista Mariana Ayrez, que me abriu os olhos para a relevância do Perifacon. Ela reiterou que “embora outros eventos promovam a cultura pop e reúnam artistas e público, eles têm muito incentivo de atores empresariais privados. Enquanto isso, a Perifacon oferece cultura geek, amor e diversão para todos os envolvidos, independentemente de seu orçamento. Seu principal objetivo é a acessibilidade.”
Delgado acredita que ao mesmo tempo que a Perifacon chama a atenção para a desigualdade social, também promove artistas dessas comunidades marginalizadas e apresenta os seus produtos a um público que os quer e não os consegue de outra forma. A influência da favela está em toda parte na arte, na cultura e nos esportes brasileiros.
“A favela é a potência que as pessoas já conhecem. Porém, marcas e empresas ainda buscam o mesmo perfil de pessoas que já têm acesso a tudo. Sabemos disso pela falta de apoio às áreas desfavorecidas”, explica Ayrez.
Enquanto isso, para os jovens que crescem nas favelas, a convenção é um evento pelo qual ansiamos. “O Perifacon é tudo que Eduardo, de 12 anos, sonhava fazer parte, pois cresceu sofrendo bullying por gostar de coisas ‘estranhas’”, diz Marques.
“Minhas experiências fora da periferia com pessoas de outras classes sociais me mostraram como o preconceito opera de forma sistemática”, afirma. “O simples fato de ser favelado e gostar de quadrinhos fascinou a criançada rica. Minhas experiências como nerd foram marcadas por uma série de contradições, estereótipos e imagens conflitantes. Porém, ao mesmo tempo, é uma honra poder me afirmar como um nerd de bairro mesmo com esses contratempos.”
Delgado e seus colegas têm planos de manter a Perifacon funcionando e de expandir o acesso à tecnologia e aos jogos no futuro para as comunidades que mais precisam. “Meu sonho é levar o Perifacon para outros estados brasileiros e sermos convidados pelas autoridades locais para trabalharmos nesse sentido. Eu levaria o Perifacon para qualquer lugar do Brasil.”
Enquanto isso, Ayrez espera que o evento cresça a ponto de as marcas e os atores do setor privado competirem para ver quem pode apoiá-lo. “Espero que continuem esse trabalho incrível que descobre talentos a cada edição, que leva alegria a muitas pessoas que por vários motivos não podem ir aos eventos mainstream.”
Ramos cita o trabalho do filósofo de Hong Kong Yuk Hui e seu conceito de tecnodiversidade como uma forma de pensar sobre o que a equipe quer fazer com o Perifacon. “Acho que o Perifacon faz parte de um movimento de inovação não colonizada que, no futuro, pode se tornar parte da indústria cultural global”, afirma. A convenção acabará se tornando um produto por si só, mas que mostrará ao mundo que “além dos jogos e da cultura nerd, a favela tem talentos inexplorados em moda, culinária e assim por diante”.